Escassez do ser diferente, o carrinho de compras e as crianças na praça

Na Praça Inácio Dias, no bairro de Perus (SP), uma cena incomum chama a atenção: três crianças se divertem com um carrinho de compras em um canto da praça. A cena ocorreu durante na última edição do Sarau D’Quilo de 2015 (12/12), evento realizado quinzenalmente no bairro de Perus, na zona oeste da cidade de São Paulo.
Sendo um sarau o encontro da arte e cultura, tem o poder de conectar pessoas desconhecidas e ligá-las às emoções, palavras, gestos e musicalidades, antes apenas decifrados pelo indivíduo isolado. À medida que o indivíduo permite-se, transforma-se em coadjuvante ao transmitir para o coletivo suas experiências significativas.
É dentro deste cenário que ocorre quebras de paradigmas, o qual o pensamento é induzido a analisar ou mesmo exercitar o desejo primordial do ser humano e anda adormecido: o de ser e mostrar-se diferente. E o que entende-se por diferente? Aquele “p*&%@ louca”, discípulo do “f0!@-se”? Sim, pois é desta forma que será carimbado pelo senso comum e não, uma vez que tudo dependerá do vigor mental e do grau de coragem moral e social de cada situação enfrentada.
Entre ser diferente e ser louco existe nada mais do que uma linha tênue. Não é fácil pra ninguém! Entre as qualidades favoráveis do ser diferente está o fato deste indivíduo jamais destruir, nem falar amém para tudo; age com o poder individual, abraça o instinto de escolha e transformação. Esta particularidade sobra nas crianças, romanticamente interpretada, inclusive, como inocência. Eis a vantagem da infância. Já nos jovens e adultos anda escasso, ou no mínimo, atrofiado.
Em épocas de radicalizações e uma insanidade sem precedentes, tudo ocorre em blocos de encaixe. Pensa-se, ama-se, odeia-se, rebela-se, descarta-se...tudo juntinho, em blocos. Não há espaço para contradições quando as peças se encaixam.
E foi justamente no processo de afirmação, ocupação e quebra de paradigmas em um bairro periférico de São Paulo que elementos como um carrinho de supermercado, crianças brincando e a apresentação artística clamando por justiça ao povo preto, criou uma perspectiva intrigante e um ensaio do exercício da reflexão sobre a individualidade.
É inegável afirmar que o entretenimento, pelo menos por certo tempo, cria certa distração quanto à realidade vivida e certo vislumbre do que se gostaria de viver ou ser. As atividades culturais, por sua vez, criam estas mesmas conexões, no entanto, conseguem ir além ao ultrapassar as barreiras do consolo e inserir pontos de interrogações na cabeça do espectador.
O carrinho na praça me remeteu ao “viver consumista” em que fomos criados e induzidos a pensar sempre sob esta ótica. As apresentações artísticas às convocações milenares feitas aos seres humanos e lembra que “nada é novo abaixo do sol” e, sendo esta frase retirada de uma passagem bíblica, percebe-se também a trágica sina de se estar condenado a uma cegueira dogmática, prova de que o pensamento em bloco continua a vigorar em perspectivas diferentes há milênios.
E o que nos leva a confundir constantemente o ser diferente com o individualismo exacerbado ou, para alguns, “a verdade individual”? O pensamento em blocos seria apenas uma das hipóteses, acrescido da época em que vivemos, sendo ela a das radicalizações sem limites. O golpismo de ontem é o mesmo de hoje. O oprimido de ontem é o mesmo de hoje e mesmo mediante os avanços tecnológicos, continua a ser induzido a clamar por mais opressão. O falso moralismo é a verdade reinante. O narcisismo faz coro às ruínas da ignorância e intolerância.
São mais interrogações do que pontos finais, afinal de contas, para que haja abundância do ser diferente é preciso filosofar, mas antes de tudo, extinguir qualquer tipo de imposição. Enquanto isto, o símbolo do consumismo é manuseado pelas crianças na praça. Umas já dentro dele e outras a empurrá-lo a espera do tornar-se adulto.