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Trilha da Memória: o despertar para os avanços e retrocessos da Fábrica de Cimento Portland Perus



Comecei a andar de trem sozinha por volta dos meus treze anos de idade e, ainda assim, apenas no período de férias. Saía de Francisco Morato e seguia à Vila Mariana para passar alguns dias na casa da minha avó paterna. A sensação de liberdade era grande e a paisagem sempre maravilhou o meu olhar e preencheu a minha imaginação de curiosidades e fantasias. Como as coisas mudam. Foi-se o tempo em que era prazerosa uma viagem de trem, mas não vamos tratar das condições precárias do transporte público, portanto, relute sempre que possível em não perder o direito de fantasiar de que tudo apenas não passa de um sonho desconfortável.


Entre Caieiras e Perus, sentido São Paulo, olhando para a direita é possível avistar uma fábrica abandonada. Não me recordo ao certo quando comecei a repará-la, mas desde aquele momento, repetidamente, pensava: “um dia ainda vou conhecer aquele lugar.” O dia tão esperado chegou e, para a minha surpresa, superou as expectativas.


O passeio é mais uma das iniciativas da Comunidade Cultural Quilombaque. Trilha da Memória busca resgatar a história da região, sobretudo manter viva a lembrança que envolveu a instalação, desenvolvimento e fechamento da primeira fábrica de cimento que deu certo no país: a Fábrica de Cimento Portland Perus.


A trilha (re)descobre um pequeno túnel utilizado na época pelos trabalhadores e suas famílias para irem à escola, fórum, etc. Depois chaga-se as primeiras instalações abandonadas e que faz parte do contexto do funcionamento da fábrica. A casa dos administradores, dando vazão ao pátio, restaurante até se chegar as instalações onde trilhos e máquinas trabalharam incessantemente.


Ferro, rochas, cimento, vagões abandonados, entradas sinistras, buracos, escadas de ferros quebradas, torres e fornos abandonados são alguns dos elementos que mais se vê no local. Além do que, o local é cheio de passagens subterrâneas e isto deixa o ambiente mais interessante e misterioso. Visitar o local à noite só para os corajosos.


Bem mais adiante, pode-se contar com a presença de algumas famílias. Na antiga vila, a capela ao centro faz coro ao triângulo de casas. Mais caminhada e se tem a oportunidade de andar de Maria Fumaça do século 19, por 3 quilômetros de trilhos já recuperados e conhecer os modelos de trens que fizeram parte da história do nosso país. Entre eles estão o trem de Santo Dumont, o que inspirou Adoniram Barbosa a compor Trem das Onze e a primeira locomotiva a ser fabricada no Brasil. Garanto que não são apenas as crianças que apreciarão o passeio.


Por curiosidade: a construção da Estrada de Ferro foi solicitada com o objetivo de atender os romeiros que se dirigem ao santuário, no entanto, nunca chegou a Pirapora. “Os trabalhos de construção foram realizados entre 1911 e 1914, com Os trilhos implantados em paralelo ao leito do Rio Juquery e do Córrego Ajuá (ou Perus), seu afluente. Entretanto, pouco depois do km 15, a linha foi bruscamente desviada para o Norte, na direção do bairro de Gato Preto, área então sob jurisdição do Município de Parnaíba, em flagrante contradição com o processo.”²


História


A história que envolve a Fábrica de Cimento Portland Perus é extremamente rica em detalhes, tramoias e injustiças, por isto, a abordagem será apresentada de forma sucinta.


Em 1910, o ministro Sylvio de Campos já havia descoberto que as rochas da região eram as melhores para se produzirem cimento. Em meados de 1926 a Fábrica de Cimento Portland Perus é inaugurada resultante de um consórcio entre comerciantes canadenses representados pela Drysdale y Pease (Montreal) e brasileiros ligados à Companhia Industrial e de Estrada de Ferro Perus-Pirapora.³


Chefiada pelos canadenses, a usina recebia todo tipo de cuidadosos, sobretudo com a qualidade de vida dos trabalhadores e suas famílias.


J.J. Abdalla, ministro do governo na época e estrategista de primeira surge. Sabia que o contrato de concessão para o funcionamento da fábrica iria vencer em 1950. Sob o pretexto de que a partir daquele momento, a usina só iria vender a produção se recebesse adiantado, captou recursos o suficiente para comprar a fábrica dos canadenses, assumindo em 1951.

O novo empregador só pensava em expandir a produção e esqueceu-se das questões trabalhistas e ao invés de concertas as máquinas apenas remendavam as instalações para não interromper o ritmo da produção. Em menos de três anos a primeira greve estourou.


Para ter ideia, os filtros dos fornos não foram instalados corretamente; 10% da fumaça que saia diariamente pelas chaminés espalhava-se no ar do bairro, principalmente o Jardim Russo, indo parar diretamente no pulmão da população. Outro agravante era quando chovia o pó de cimento, misturava-se com a água e na secagem os telhados cediam. Os barrancos (até hoje) são cimentados pelo mesmo motivo.


Queixada não é lamentação


Queixadas não é de comer, nem lamentação, é sinônimo de luta e honra. O nome atribuído aos trabalhadores significa “porcos do mato que, ao perceberem o perigo, reúnem-se em manadas, obrigando o inimigo a refugiar-se.” O Sindicato dos Queixadas – como passou a ser conhecido – chegou a sindicalizar 99% dos trabalhadores assalariados. No período de 1954 a 1961, foi criada a cooperativa do “Queixada” com a finalidade de ajudar os companheiros que tivessem algum problema de família.


A Luta dos Queixadas durou sete anos contando com a organização dos operários, população e sindicatos ou organizações paralelas. O movimento teve participação ativa por meio das mobilizações de protestos, deixando evidente o descontentamento com as políticas apoiadas e implantadas pelo Estado e empresários em plena Ditadura Militar - imagine quanta repressão e mortes a história esconde.


Foi o movimento que realizou a maior greve na historia do Brasil e este ano faz 50 anos de luta. As importantes conquistas para os trabalhadores brasileiros, atingidas a partir do movimento dos Queixadas foram: a primeira regulamentação do salário-família; a presença do sindicato nos atos de contratação e demissão de mão de obra; o reconhecimento da legalidade das greves por atraso de pagamento. Portanto, a fábrica de cimento tem seu papel na economia nacional e sua história merece ser (re)conhecida.


Serviço


Não há data prevista para a próxima Trilha da Memória, por isto, entre em contato com o Quilombaque e faça sua reserva.

Taxa: R$15 - incluso café da manhã e ingresso para Maria Fumaça.

Valores Sujeito a alteração.

Telefone (11) 3917-3012

Email: quilombaque@gmail


¹,²e ³ Elcio Siqueira, Companhia Brasileira de Cimento Portland Perus: contribuição para uma história da indústria pioneira do ramo no Brasil (1926-1987)


¹ Soraia Ansara, O LEGADO DA GREVE DE PERUS: LEMBRANÇAS DE

UMA LUTA OPERÁRIA.


PUBLICADO EM COMUNIDADE NEGRA DE FRANCISCO MORATO | 2012

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Tamires Santana

Tamires Santana é um ser vivo, dotado de inteligência e conhecimento (até que se prove o contrário). É pai, mãe e espírito - nem um pouco santo. Estuda, trabalha, busca, anda — principalmente de trem e bicicleta. Chegou a conclusão de que quanto mais se busca, menos se sabe. Gosta de falar sobre arte, cultura, cultura popular, política, economia solidária, design, religião, índio, folclore brasileiro, samba, carnaval, literatura infantil, ciência, criança,
desenho animado, cinema, plantas, minhocas, compostagem e um montão de outras coisa. É adepta da
filosofia de vida "é pra frente que se anda".

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